Os novos escravos

Sou Técnica de Massagem.
Encontrava-me desempregada há já algum tempo, e uma vez que já tivesse frequentado algumas formações do Estado/IEFP (o qual mas impingiu como condição obrigatória para poder continuar a ter direito a - mal - sobreviver com o apoio a que eles chamam de RSI _ Rendimento Social de Inserção. Resta saber 'inserção' do quê - para 'cidadãos em situação de carência socio-económica, e o qual não permite sequer a sobrevivência digna do mesmo), aleatórias e sendo que fui tendo que aceitá-las e escolhê-las de entre um vasto e tentador leque de ofertas, todas elas de encontro aos meus interesses pessoais, decidi - por alguma obra do Destino - nesse ano de 2016 (e uma vez que me encontrasse desmotivada e sem rumo. Na prática: desempregada) adiantar-me eu e pesquisar as ofertas disponíveis.

Encontrei assim uma intitulada de 'Técnica de Massagem de Estética e Bem-Estar'.
Chamou-me à atenção, até porque sempre gostara de tudo o que tivesse a ver com bem-estar, saúde e 'Beleza'.

Li o respectivo Referencial, gostei e assim sendo inscrevi-me na dita Formação.
Fui chamada, aceite e comecei a frequentá-la.
Um ano intensivo com alguns 50 módulos de formação e mais 210 horas de estágio no final.

Muitos desafios, muita adaptação às (faltas de) condições gerais da escola e as quais o IEFP proporciona, muito choque relativamente à intenção teórica destas formações depois com a prática..., muito esforço, mas no final lá concluí a dita e com sucesso, de resto.

No entretanto chegara a fase de estágio.
Fora-nos recomendado por formadores e mediação que pesquisássemos nós os locais mais ao nosso gosto, ainda que de toda a forma o IEFP no-lo garantisse, e em último caso.

Como a minha orientação é o lado terapêutico da massagem, ficou-me na memória, das aulas, uma referência que o formador de Medicinas Orientais (e respectivas massagens) dera uma vez em aula relativamente a um espaço em Lisboa onde a médica 'prescrevesse' a terapia Tui Na - uma Chinesa e das que mais gostei de aprender - após respectiva consulta/tratamento clínico, já com o respectivo protocolo a ser depois executado pelo Técnico de Massagem.

Assim sendo e por essa altura desloquei-me a esse espaço (alegadamente de renome) e eventualmente fiz lá o meu estágio enquanto Técnica de massagem.

Sofri um choque aos primeiros dias ao perceber a(s falta de) condições do mesmo:
Localizado num prédio velho e com fissuras, um andar adaptado onde um dos lados (portanto da antiga casa) tinha os vários quartos adaptados a "gabinetes" de Massagem.
Marquesas com toalhas as quais raramente fossem mudadas, até porque não existisse uma Lavandaria nem tão pouco máquina de secar roupa, pelo que a roupa era lavada e secada numa pequena corda (e um pequeno estendal) na varanda por nós, às vezes encavalitada.
Para a execução da massagem em si era utilizado um creme neutro (o qual nos fora recomendado que usássemos com parcimónia nos clientes), ou seja, nem um óleo natural vegetal havia para o efeito - o que é suposto existir num espaço que se auto-intitula de SPA como era o caso daquele (não obstante, para mais, não existir nenhuma facilidade com nenhum tipo de tratamento com água, que é o pressuposto para que um espaço comercial do género possa efectivamente auto-proclamar-se SPA - Salus Per Aquam / "saúde via água".
Creio que para bom entendedor...)

De um modo geral as condições eram pouco dignas quer de um espaço terapêutico, quer de um de 'Welness'.

Escusado será dizer que entre isto e conflitos com a dona do espaço, não lá fiquei após o estágio (e se terminar o estágio em si não tenha sido difícil por si só).

Após esta experiência não arranjei imediatamente emprego.
Ia executando umas massagens num salão humilde (não concebido para o efeito) perto de casa e era isso.

O tempo foi passando e eventualmente encontrei um sítio a oferecer emprego a técnicos de Massagem.
Um conceito low-cost, inovador, num espaço com vários gabinetes, com inscrição mensal por parte do cliente e consequente usufruto semanal dos serviços.
Em regime de part-time (afinal é um trabalho fisicamente cansativo, e para mais o espaço era longe da minha morada)  pareceu-me tudo muito bem.

E depois apercebi-me das condições gerais...:
Pagamento à hora no valor de 4,50€.
Ora, debrucemo-nos já nesta questão...:
Mesmo passando à frente a questão do valor remuneratório, centremo-nos na modalidade de pagamento: à hora.

Ora, cada um a interpretará consoante os seus critérios pessoais, mas dada a área em questão e tendo em conta que a maior parte das vezes o regime de trabalho deste tipo de técnicos e profissionais qualificados e especializados é efectuado em regime de freelancing e por sua própria conta, está bom de se ver que tal é uma contradição com 'pagamentos à hora', até porque a duração mínima de uma massagem não é forçosamente uma hora.

Ao sermos pagos à hora, depreende-se que:
- a hora é para 'encher' com o que quer que seja (e não apenas o serviço para o qual somos contratados, o qual nos compete e no qual somos qualificados - assim é na prática);
- não nos é reconhecida a dita qualificação e como tal somos pagos pelo nosso tempo (e não pela função).

E assim se confirma:
Neste espaço a que me refiro não só não se é remunerado à comissão (o que da minha experiência pessoal é o mais justo, desde que se seja devidamente remunerado), como as marcações são efectuadas umas imediatamente a seguir às outras.
Ora, isto é incomportável, pouco profissional e consequentemente até um pouco anedótico, como será óbvio a qualquer pessoa minimamente sensata (já nem digo inteligente):
Nem o/a cliente uufrui do tempo do serviço completo para o qual pagou, nem o cliente seguinte é atendido a horas.
Solução? : forçosamente cortar-se na duração do serviço ao cliente.
Portanto saímos todos a ganhar, obviamente...

Até porque neste cenário, fica claro que o profissional é tratado como máquina. Ou escravo.
Sim, não se pode presumir que o considerem um ser-humano, com contingências como necessitar de recuperar energias; alimentar-se; eliminar os resíduos fisiológicos, espairecer e ir tomar um café (ou mesmo consultar o seu telefone para alguma eventualidade familiar).

Também se assume, assim, que o profissional não tem direito a qualquer autonomia na gestão da sua clientela.
Os novos escravos.

E digo 'novos' pois que os da História, "coitados", sabemos que não eram pagos, que eram pertença dos seus Senhores e que inclusive eram considerados abaixo de animal (não-humano).
Mas isto ao menos passava-se às claras.

No caso do trabalhador - ou profissional - precário a realidade é mais sórdida, pois que camuflada com a ilusão de que este profissional é valorizado e respeitado quando na realidade o não é, e isso traduz-se em todas as vertentes: remuneração, (falta de) direitos, falta de condições para o exercício das funções, falta de básico senso de respeito e consideração pelo próximo.

O cliente final não deixa de ser cúmplice em toda esta trama, pois que o fechar dos olhos a tal realidade ajuda a manter a ilusão da consciência individual tranquila (massagens ao preço da chuva?
A que custos?
Que interessa - desde que este saia beneficiado...)

E depois este paradigma torna-se uma 'bola de neve': o profissional - não obstante as suas qualificações e capacidades - vê-se ou sente-se forçado a sujeitar-se a tais condições.
A entidade empregadora usa e abusa do profissional - o qual em teoria nem seu empregado é - pois que como este tipo de condições são regra, sabe que o profissional acaba a se sujeitar sob pena de não ter rendimentos para (sobre)viver e alimentar as bocas em casa...

Ou isso, ou fazendo o profissional uso dos seus direitos, da sua autonomia, do seu livre-arbítrio e seguro das suas capacidades e especificidades (e cada pessoa traz o seu valor a uma empresa) 'impõe-se' sem receios até que estas entidades (os gananciosos e medrosos insensíveis e antipáticos) não tenham solução senão ceder.

Sim, porque existe um limite ao abuso e ao descartar e substituição de máquinas (leia-se: profissionais) por outras máquinas.
Se o profissional estiver ciente das suas capacidades e não tiver medos, não mais será assim tão descartável e ou substituível.
Tal afectará empresa e clientes, e terá naturalmente de haver lugar a cedências, concessões e negócios.

Até porque o profissional qualificado é o primeiro responsável por se auto-valorizar e respeitar.
Enquanto assim não fôr, mais ninguém o fará e só aí se porá fim à inconsciência, ao Medo, ao conluio, à desempatia e ganância sociais, ao egocentrismo, e no geral ao paradigma social de escravatura laboral em pleno séc. XXI.

                       

     

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